Alastrim: A Varíola Menor e o Triunfo da Erradicação
A história das doenças infecciosas é marcada por flagelos que, por séculos, assombraram a humanidade. Entre eles, a varíola (variola major) destaca-se como uma das mais devastadoras, mas também como a primeira doença infecciosa humana a ser completamente erradicada. No entanto, menos conhecida, mas igualmente relevante para a compreensão da erradicação global da varíola, é o alastrim, também denominado varíola minor. Esta forma mais branda da doença, embora menos letal, representou um desafio persistente e uma peça-chave na estratégia global de saúde pública que culminou na vitória contra o vírus.
Classificação Biológica do Agente Etiológico
Tanto o alastrim quanto a varíola major são causados por variantes do mesmo vírus. Vejamos sua classificação taxonômica:
Ordem: Ortopoxvirales
Família: Poxviridae
Subfamília: Chordopoxvirinae
Gênero: Orthopoxvirus
Espécie: Variola virus
Variante (cepa): Variola major (causador da varíola clássica e grave)
Variante (cepa): Variola minor (causador do alastrim)
O Variola virus é um vírus de DNA de fita dupla, envelopado, com um genoma grande e complexo. A distinção entre Variola major e Variola minor reside em pequenas diferenças genéticas que resultam em manifestações clínicas de gravidade variada, com a Variola minor apresentando uma virulência significativamente menor.
Alastrim: Características e Diferenças em Relação à Varíola Maior
O alastrim é uma forma mais branda da varíola, mas compartilha muitas características clínicas com a varíola maior, o que tornava seu diagnóstico diferencial um desafio em campo.
Características Clínicas do Alastrim:
Sintomas Iniciais: Febre baixa, mal-estar, dor de cabeça e dores musculares, geralmente menos intensos que na varíola maior.
Erupção Cutânea: Após a fase prodrômica, surge uma erupção cutânea que progride de máculas (manchas) para pápulas (pequenas elevações), vesículas (bolhas com líquido claro), pústulas (bolhas com pus) e, finalmente, crostas que caem.
Distribuição das Lesões: A erupção é centrífuga, ou seja, mais densa na face e nas extremidades (braços e pernas) do que no tronco. As lesões geralmente se desenvolvem em uma única "safra", o que significa que todas as lesões em uma determinada área estão no mesmo estágio de desenvolvimento.
Menor Gravidade e Mortalidade: A principal diferença em relação à varíola maior é a taxa de mortalidade. Enquanto a varíola maior podia ter uma taxa de letalidade de 20-30% (ou até mais), a taxa de mortalidade do alastrim era tipicamente inferior a 1%, geralmente associada a complicações secundárias em indivíduos debilitados. As cicatrizes (marcas de varíola) também eram menos proeminentes ou ausentes no alastrim.
Desafios Diagnósticos:
O diagnóstico diferencial entre alastrim e varíola major era crucial, mas difícil apenas com base nos sintomas iniciais, pois ambos os vírus eram clinicamente muito semelhantes em suas fases precoces. A distinção só se tornava clara à medida que a doença progredia e a gravidade da erupção e do quadro geral se manifestava.
O Papel do Alastrim na Erradicação Global
Embora menos grave, o alastrim desempenhou um papel significativo na persistência da varíola no mundo e na complexidade de sua erradicação:
Reservatório de Vírus: O alastrim mantinha o Variola virus em circulação, funcionando como um "reservatório" de casos, mesmo em áreas onde a varíola maior era menos comum. Isso significava que, enquanto o alastrim existisse, o vírus poderia sofrer mutações ou se espalhar para populações mais vulneráveis, potencialmente desencadeando surtos de varíola maior.
Dificuldade de Identificação: A natureza branda do alastrim fazia com que muitas pessoas infectadas não procurassem atenção médica, ou seus casos fossem subnotificados ou confundidos com outras doenças, dificultando o monitoramento e o rastreamento de contatos.
Vacinação Essencial: A vacina contra a varíola era eficaz contra ambas as formas da doença. A estratégia global de erradicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) na década de 1960 focou em vacinação em massa e na "vigilância e contenção" (identificação de casos e vacinação em anel ao redor dos infectados). A erradicação do alastrim foi tão importante quanto a da varíola major para alcançar o objetivo final.
O último caso natural de varíola (seja major ou minor) foi registrado na Somália em 1977. Em 1980, a OMS declarou oficialmente a erradicação global da doença.
Conclusão
O alastrim, ou varíola minor, representa um capítulo crucial na história da saúde pública. Embora menos conhecido que sua contraparte mais letal, o estudo e o controle do alastrim foram fundamentais para a estratégia que levou à erradicação do Variola virus do planeta. A eliminação dessa forma mais branda da doença solidificou o triunfo da ciência e da colaboração internacional sobre uma das pragas mais antigas da humanidade. A história do alastrim é um testemunho da importância da vigilância epidemiológica, da vacinação universal e da pesquisa em saúde para o bem-estar global.
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